Vieira da Silva: "O conceito de Estado social está hoje sob 'stress'"

Crise. Vieira da Silva fez parte da comissão parlamentar que acompanhou a aplicação das medidas da "troika" e não tem dúvidas de que a assistência financeira debilitou o Estado social. Por outro lado, não tem dúvida de que o modelo social foi importante a conter os efeitos nefastos da crise. Defende a convergência dos sistemas de pensões
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Foi diretor-geral, secretário de Estado e ministro da Segurança Social. Com base nesta experiência, considera que o Estado social em Portugal está ameaçado?

Nas ameaças ao Estado social estamos a falar de problemas de sustentabilidade financeira, mas também de uma dimensão mais ideológica, porque há visões que até consideram o Estado social um obstáculo ao funcionamento das economias sociedades. E nós vivemos hoje num momento em que o conceito de Estado social está sobre stress, do ponto de vista financeiro e dos seus fundamentos.

Por via de uma pressão liberal que cria a ideia de que é mau para a economia?

Por via de várias pressões. Uma delas tem que ver com a crise económica. Depois, curiosamente, sofre hoje um stress também no domínio doutrinário. E digo curiosamente porque é hoje consensual para muitos analistas que o Estado social teve um papel muito importante na contenção da grande recessão de 2008/2009.

Os efeitos teriam sido mais nefastos sem um Estado social forte?

Seguramente. Foi responsável pela contenção relativa desta crise porque colocou rendimentos nas famílias, permitindo uma mais rápida estabilização, ainda que baixa, das economias. Foi uma resposta muito forte porque não houve tempo para a resposta keynesiana clássica: o investimento público. Além desta pressão da crise, há uma mais estrutural: a evolução demográfica.

O envelhecimento da população é a principal ameaça ou é a tal pressão liberal?

É muito difícil hierarquizá-la. Entre a ameaça económica e a ideológica, de uma economia mais desregulada e mais dependente do mercado, é hoje difícil dizer qual tem mais importância. Nos anos 80, a dimensão demográfica começou a questionar o Estado social, mas este foi-se adaptando. Os desafios demográficos não são inultrapassáveis, pois os modelos de Estado social têm instrumentos para combater esses problemas.

Que instrumentos são esses? Aumentar a idade da reforma?

A evolução demográfica, nada acontecendo de extraordinário, aponta nesse sentido. É necessário a inversão da tendência completamente suicidária que muitos países tiveram de saídas precoces do mercado trabalho.

Em 2012 disse que já tudo tinha sido feito e que não havia mais por onde cortar. O Estado social está nos limites mínimos?

Disse isso numa perspetiva macro. É sempre possível e desejável obter ganhos do ponto de vista da eficácia, mas cortes pesados - como aqueles que têm sido pensados ou feitos - penso que começa a ser difícil. É difícil pensar, por exemplo, que o nosso SNS aguenta muito mais cortes ou mais medidas de restrição administrativa. Do lado das prestações sociais, também já houve cortes pesados.

Como é possível que um idoso com uma pensão de 215 euros compreenda uma pensão de 9 mil, como existe na CGA?

Existe um teto para as pensões na nossa lei e só pode ser ultrapassado se a pessoa teve contribuições efetivas que ultrapassem esse valor, o que é raro. Agora, tenho dúvidas de que a sociedade fique mais bem protegida se nos concentrarmos numa resposta única, por muito equalitária que possa parecer. A credibilidade social de um sistema de pensões implica que haja uma relação íntima entre o esforço contributivo e valor da pensão.

Não quero parecer mais socialista do que quem estou a entrevistar. Mas se uma pessoa ganhou mal toda a vida e descontou pouco não é duplamente injustiçada?

É certo que o nosso sistema de pensões permitiu assimetrias excessivas nos sistemas. Por isso é que sou a favor da convergência dos sistemas, de forma a que todos tenham uma idade de reforma idêntica. Agora, de facto, nem todas as pensões mínimas têm a mesma natureza. Algumas têm esse valor mínimo porque as pessoas só contribuíram durante grande parte da vida para outros sistemas, por exemplo, fora de Portugal.

Há uma ideia repetida no senso comum até à exaustão de que no futuro não existirão reformas. Isto é possível?

Acho isso economicamente pouco sério, socialmente impossível e politicamente utilizado como demagogia. E é normalmente utilizado como estratégia comercial de quem quer vender fundos de pensões. Não pagar reformas seria um retrocesso que a sociedade não aceitaria.

O atual Governo já foi acusado de liberal. O que lhe pergunto é se tem sentido um ataque por parte do Governo ao Estado social tendo essa base ideológica?

Existe essa dimensão, é indiscutível. Vemos isso quando se fala no cheque-ensino, quando se defende a mercantilização de algumas áreas que são tradicionalmente consideradas áreas de bens públicos. Nos três sectores.

O PS sempre defendeu o direito de opção.

Claro. Mas existe uma corrente, que é dominante hoje no PSD, que defende a diminuição do Estado, através da privatização das funções do Estado.

Fez parte da comissão que acompanhou a aplicação das medidas da troika. A assistência debilitou o Estado social?

Obviamente que a situação de assistência financeira que vivemos fragiliza o Estado social. Algumas das organizações da chamada troika têm uma matriz de pensamento ideológica dominante que se afasta do que considero ser o equilíbrio. Não sou pela mercantilização quase absoluta e algumas das inspirações que sentimos, são essas. É uma questão de divergência da visão do mundo.

E a ação do Governo?

A mesma coisa. Há correntes que são predominantes na direita portuguesa que defendem uma sociedade de mínimos, em que a economia fica mais dependente da chamada mão invisível. Não tenho essa visão. É uma questão de divergência profunda a nível ideológico e até cultural. As duas situações contribuíram para a descredibilização do Estado social.

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